HISTÓRIA DA VIDA E MARTÍRIO DO GLORIOSO SÃO JORGE
Segundo a interpretação extraída do IV volume do "Flos Sanctorum"
Diocleciano, imperador de Roma, vendo que tudo lhe sucedia bem,
determinou, segundo seu parecer e engano diabólicos, sacrificar aos
deuses, principalmente a Apolo, sabedor das coisas que haviam de
suceder. E consultando urna vez a estátua sobre certa coisa que
desejava saber, dizem que lhe respondeu o ídolo, que os justos que
estavam na terra, lhe eram impedimentos para dizer a verdade, e por
causa deles sucedia muitas vezes ser falso o que ele dizia que havia de
ser. Enganado o mísero Diocleciano com o seu erro, desejava saber que
homens eram aqueles que se chamavam justos na terra. Respondeu-lhes um
sacerdote dos ídolos: "Esses, imperador, são os cristãos".
Não demorou muito o tirano de saber isto,
e moveu guerra e perseguição contra os cristãos, já quietos das
perseguições passadas. Logo sem mais tardar começou a perseguir os
inocentes e justos. Era muito para chorar, ver os cárceres, feito para
matadores, adúlteros e ladrões, cheios de Santos, que confessavam a
Cristo por Deus e Salvador; e ver que não se contentava o tirano de
atormentar os Santos com os tormentos antigos e costumados, mas, cada
dia, inventou novos e mais cruéis tormentos com os quais grande multidão
de cristãos eram torturados. Indo cada dia, de todas as partes, muitas
acusações contra os cristãos ao imperador, e principalmente,
referindo-lhe os procuradores do Oriente que os cristãos eram tantos
que desprezavam seus mandados, e que ou haviam de permitir que vivessem
em sua lei, ou que estando eles com grande exército, e assim os
matassem todos, porque outra maneira não seria fácil.
Ouvindo o perverso Diocleciano estas
coisas, mandou chamar todos os governadores e procuradores do Oriente e
outras partes. Estando junto com os senadores, manifestou a crueldade
que tinha contra os cristãos, e mandou que cada um dissesse seu
parecer. Sendo alguns de contrairia opinião, por último o tirano
afirmou que nenhuma coisa havia mais excelente que a veneração dos ídolos;
e assim lhes disse: "Todos que estimais minha amizade, ponde todas
as forças para lançar fora de todo o meu império a religião dos
cristãos, e eu vos favorecerei com todo o meu poder".
Louvaram todo este parecer do imperador, e
determinaram que se referissem ao povo três vezes em três dias.
Estava então no exército o maravilhoso
cavaleiro de Cristo, Jorge, o qual era natural de Capadócia, Ásia
Menor (atual região da Turquia), de uma família nobre e tradicional na
cidade. De pai e mãe cristãos, que muito zelaram pela sua instrução
e educação, fora criado desde menino na sagrada religião cristã.
Sendo Jorge ainda moço, morreu o pai, oficial do exército imperial, em
uma batalha. Por ser ele bom cavaleiro, foi da Capadócia para a
Palestina com sua mãe que era natural daquela região, onde tinha
fazenda. E como tivesse idade para a guerra, foi instituído por capitão,
e em pouco tempo sua personalidade, sua coragem e seu porte foram
notados pelo Imperador Diocleciano, que o nomeou Conde. Ignorando ser
aquele bravo um cristão, o Imperador romano elevou-o ainda a Tribuno
Militar e ao Conselho Militar. Neste tempo faleceu sua mãe, e ele
tomando grande parte nas riquezas que lhe ficaram, foi-se para a côrte
do Imperador, sendo de idade de 23 anos. Vendo, Jorge, que urdia tanta
crueldade contra os cristãos, parecendo-lhe ser aquele tempo
conveniente para alcançar a verdadeira salvação, distribuiu com diligência
toda a riqueza que tinha aos pobres. Depois disto, no dia em que o
conselho do senado havia de ser confirmado contra os cristãos, Jorge,
sem temor humano, armado só de temor de Deus, com alegre rosto se pôs
em pé no meio de toda a Assembléia e falou desta maneira:
"Oh! Imperador e nobres senadores,
acostumados a fazer boas leis, que desatino é este tão grande, que não
cessais de acrescentar vossa ira contra os cristãos, que tem a certa e
verdadeira lei, para que a deixem e sigam a seita que vós mesmos não
sabeis se é verdadeira, porque os ídolos que adorais, afirmo que não
são deuses, havendo sido homens perdidos.
Não vos enganeis: sabeis que Cristo só é
Deus e Senhor na glória de Deus Padre, e por ele foram feitas todas as
coisas, e pelo seu Espírito Santo todas as coisas são regidas e
conservadas. Pois esta é a verdade ele não queirais perturbar os que a
professam."
Ouvindo isto todos
ficaram atônitos e espantados do valor e atrevimento com que falou, e
esperavam que o Imperador respondesse; mas ele ficando perturbado e
refreando a ira, fez sinal ao cônsul Magnêncio, que respondesse a
Jorge. O cônsul mandou chegar, Jorge, mas perto de si e disse:
"Dize-me, jovem, quem te deu tamanha ousadia para falar nesta
Assembléia? Respondeu Jorge: "A verdade". Disse o cônsul:
"Que coisa e a verdade?" Respondeu-lhe: "A verdade é meu
Senhor Jesus Cristo, a quem vós perseguis". Disse o cônsul
"Dessa maneira és tu cristão?" Respondeu-lhe: "Eu sou
servo de "meu Redentor Jesus Cristo, "e Nele confiado me pus
no meio de vós "outros, para que dê testemunho da Verdade.
"Com estas palavras se turbaram todos. Então, Diocleciano pondo os
olhos em Jorge, o conheceu e lhe disse: "Sabendo eu há dias de tua
nobreza, te levantei ao mais alto grau da dignidade de minha corte, e
agora ainda que falaste tão alto, como sou muito afeiçoado à tua prudência
e fortaleza, te aconselho, como pai amoroso, que não deixes o proveito
e honra da tropa, nem queiras perder a flor da tua idade com torturas
antes, sacrifica aos deuses e receberá de mim maiores prêmios e
recompensas. "Jorge lhe respondeu: "Oxalá, oh imperador, que
conhecendo tu por mim. O verdadeiro Deus, lhe oferecesse o sacrifício
de louvor, que ele pede e deseja; e eu ficarei por fiador de que ele
Senhor de outro mais excelente império do que tens, que é o reino que
dura para sempre; porque este que agora possues, cedo se há de acabar.
E sabe de certo que nenhum desses bens que me prometes, poderão de
alguma maneira afastar-me de meu Deus, nem algum gênero de tormento que
inventares poderá tirar de mim o amor de meu Redentor nem causar em mim
temor algum da morte temporal". Ouvindo isto o imperador, cheio de
ira mandou aos soldados que o deitassem fora da Assembléia com lançadas,
e o metessem no cárcere. Fizeram logo os soldados o que lhes fora
mandado, mas, a ponta da lança com que lhe tocou no corpo um soldado,
dobrou como se fora de chumbo, e Jorge não cessava de dizer divinos
louvores. Sendo ele posto no cárcere, estenderam-no em terra e
puseram-lhe grilhões nos pés e sobre o seu peito uma grande pedra.
Tudo isso lhes mandou o tirano fazer; mas sofrendo o tormento com muita
paciência, não cessou até o dia seguinte de dar graças a Deus.
Sendo manhã, o imperador mandou-o vir
perante si, e estando Jorge muito atormentado com o peso da pedra,
disse-lhe o imperador: ."Tornaste já sobre ti, Jorge?".
Respondeu o jovem: "Por tão fraca me tens imperador, que cuidas
que um tormento de meninos e tão pequeno, havia de me afastar de Cristo
e negar a verdade, primeiro cansarás tu em me atormentar, do que eu
sendo atormentado". Disse Diocleciano: "Eu te darei tantos
tormentos que te acabarão a vida". Mandou logo trazer uma roda
grande e cheia de navalhas e meter o jovem nela para ser despedaçado.
Estava esta roda pendurada, e por baixo tinha umas tábuas nas quais
estavam pregadas muitas pontas agudas como canivetes de sapateiro.
Puseram-no entre as tábuas e a roda, atado com loros e cordas, tão
apertado que dentro da carne se escondiam as cordas; e voltando a roda,
todo o corpo lhe ficava cruelmente ferido. Este espantoso gênero
de tormento sofreu Jorge com grande ânimo; e fazia oração ao Senhor,
e depois ficou como adormecido por um bom espaço de tempo.
Vendo isto, Diocleciano, e cuidando que já
estava morto, ficou alegre e começou a louvar os seus deuses, e dizia:
"Onde está o teu Deus, Jorge? Por que não te livrou deste
tormento?"
Mandou então tirá-lo do tormento. e
partiu para ir sacrificar a Apolo; mas logo apareceu uma nuvem no ar, e
viu um grande trovão, e soou uma voz que muitos ouviram, a qual disse:
"Não temas, Jorge, porque estou contigo". Daí a pouco viu-se
grande serenidade, e foi visto um homem vestido de branco estar em cima
da roda, muito resplandecente no rosto, e deu a mão ao Santo Mártir, e
abraçando-o mandou desatá-lo; e logo desapareceu aquele varão de
tanta claridade e ficou Jorge solto, livre e são, dando graças a Deus.
Os soldados que o guardavam ficaram fora de
si, espantados de tal visão, e deram logo novas do que se passava ao
imperador que se achava no templo. Vendo o imperador a Jorge, dizia que
não podia ser aquele o mesmo Jorge, mas outro que se parecesse com ele.
Dois corregedores, um chamado Anatólio,
outro Petroleu, sendo antes criados na fé de Cristo, vendo o milagre
cobraram ousadia, e em alta voz disseram: "Um só é Deus, grande e
verdadeiro, que é o Deus dos cristãos", aos quais mandou logo o
imperador levar para fora da cidade e cortar-lhe as cabeças, Muitos se
converteram, então, ao Senhor tendo fé dentro de si, mas não ousavam
descobrir-se com temor da morte e tormentas. Também a imperatriz
Alexandra, conhecendo a verdade e começando a querer falar livremente,
um cônsul a retirou, e antes que o imperador entendesse a causa, a
deixou no seu palácio. Não sofrendo Diocleciano com estas coisas
mandou meter Jorge em uma fornalha de cal virgem, três dias, e mandou
vigiar, que lhe não viesse de nenhuma parte ajuda alguma. Sendo levado
a esse tormento preso, ia fazendo oração a Deus em alta voz, dizendo:
"Senhor meu, ponde os olhos de vossa misericórdia em mim, e
livrai-me das ciladas do inimigo, e concedei-me que até o fim confesse
o vosso santo nome".
"Não digam os meus inimigos por
minhas maldades: Onde está o teu Deus? Mandai, Senhor, o vosso Anjo em
minha guarda, assim como transformaste a fornalha de Babilônia em
orvalho, e os moços que estavam dentro, conservaste sem lhes fazer mal
o fogo".
Dito isto, e fazendo o Sinal da Cruz em
todo o corpo, com grande alegria entrou no forno de cal. Os ministros e
soldados que foram mandados pra executores destes tormentos, depois de o
deixarem no forno se retiraram. Ao terceiro dia, chamou o imperador
alguns soldados e disse: "Não fique na memória aquele
mal-aventurado Jorge, para que não haja quem honre as suas relíquias;
portanto ide, e se achardes algum osso subterrai-o, que não apareça
mais. "Foram os soldados, seguindo-se grande multidão de povo para
ver o que se passava. Descobrindo o cal acharam dentro Jorge com o rosto
resplandecente; o qual, levantadas as mãos para o céu, dava louvores a
Deus por todos os seus beneficies; e saindo do forno sem algum mal que
lhe fizesse a cal, todos se espantaram de tão maravilhosa causa, e
Louvaram o Deus de Jorge.
Chegou a nova deste milagre a Diocleciano,
este mandou chamar a Jorge e muito espantado lhe disse: "Jorge, com
que artes fazes estas maravilhas?" Respondeu-lhe: "Oh! cego
imperador, que chamas artes as maravilhas de Senhor, por isso choro tua
cegueira".
Disse Diocleciano: "Agora veremos
Jorge, se diante dos nossos olhos fazes milagres. Mandou entalo o tirano
trazer umas chinelas de ferro ardente, e mandou-lh'as meter nos pés, e
desta maneira, o fez levar ao cárcere. e indo açoitando e zombando
dele, diziam: "Oh! Como Jorge corre, ligeiramente", mas o mártir
sendo tão cruelmente levado e açoitado, ia muito alegre dizendo a si
mesmo: "Corre Jorge, para que alcances o prêmio". Depois
orando, dizia: "Senhor, olhai o meu trabalho e ouvi os gemidos de
vosso preso, porque os meus inimigos se multiplicaram e me tiveram
grande ódio pelo vosso nome; mas vós Senhor, me sarai, porque todos os
meus ossos estão atormentados, e dai-me paciência até o fim, para que
não diga o meu inimigo: "Prevaleci contra ele". "Desta
maneira passou Jorge até chegar ao cárcere, indo muito atormentado das
chagas que lhe fizeram nos pés os pregos ardentes que as chinelas de
ferro tinham para cima. Passando o Santo todo aquele dia e noite em dar
graças a Deus, no dia seguinte foi levado diante do imperador, o qual
estava sentado junto ao teatro público, estando presente todo o senado.
Vendo o imperador Jorge andar tão bem e
sem sacrifícios como se não recebera algum mal, disse-lhe.
"Jorge, as chinelas foram para ti refrigério?". Respondeu
"Jorge: "Sim, foram". Disse o imperador: "Deixa já
a tua ousadia e arte mágica, vem para nós e oferece sacrifício aos
deuses, pois de outra maneira serás atormentado com diversos
tormentos".
Respondeu Jorge: "Quão ignorante te
mostras, pois chamas feitiços ao poder do meu Deus e por outra parte dás
honras, aos enganos dos diabos que adoras".
O tirano mandou aos que estavam presentes
que o ferissem no rosto , dizendo: "Assim te ensinaram a dizer injúrias
aos imperadores? E depois disto mandou que o açoitassem com nervos de búfalo,
até que fosse desfeito seu corpo. Sendo Jorge tão sem piedade
atormentado, e não mudando a alegria do rosto, disse o tirano
"Certamente não chamarei a isto obras de virtude, mas arte
mágica". Disse então Magnencio ao imperador: "Senhor, mandai
chamar um homem que aqui mora, grande mágico e com ele será vencido
Jorge". Foi, logo, chamado o feiticeiro e lhe disse Diocleciano:
"Todos os que estamos presentes sabemos o que este maldito Jorge
faz; mas porque arte o faz, tu no-lo declararás. E rogo-te que destruas
seus feitiços e o faças obedecer-nos." Prometeu então Athanasio,
(o mágico) que no dia seguinte faria tudo que lhe ordenava; e mandou o
imperador guardar Jorge no cárcere, no qual ele invocava o nome do
Senhor, dizendo: "Seja Senhor, a vossa misericórdia sobre mim, e
encaminhai meus passos na confissão de vosso Santo nome, e acabai minha
vida na vossa fé, para que em tudo seja o vosso louvado".
No dia seguinte, estando Diocleciano no
teatro, mandou vir o mágico, o qual veio muito vaidoso e mostrando ao
imperador umas bebidas e disse: "Seja trazido aqui, Jorge e vereis
a força destas bebidas; pois se quereis que obedeça dêem-lhe de beber
o que trago neste vaso. E se quereis que morra dêem-lhe deste outro
vaso".
Mandou o imperador vir perante si Jorge, e
disse-lhe: "Agora, Jorge, serão acabadas as tuas artes mágicas",
e mandou que por força bebesse um daqueles vasos; mas o Santo sem algum
temor o bebeu sem lhe fazer mal; e finalmente esteve muito constante na
fé e ficou a arte do diabo desprezada.
O imperador vendo isto, mandou-lhe dar a
outra bebida quê o constrangessem a bebe-la; mas o bem-aventurado Jorge
não esperando que o forçassem, pela divina virtude bebeu a outra sem
lhe fazer mal algum.
Ficou o imperador pasmado e espantado e
todo o senado e o mesmo feiticeiro de tamanha maravilha; e disse o
imperador a Jorge mártir: "Até quando nos há de pôr em espanto
com isto que fazes? Por que não acabas de confessar a verdade? Como
escapas tão facilmente do veneno que te dão a beber e como desprezas
os tormentos?" Respondeu Jorge: "Não cuides, imperador, que
somos livres por alguma humana providência, más só pelo poder e
virtude de Cristo; e confiados nele, não fazemos caso dos tormentos
seguindo sua "doutrina". Disse então Diocleciano: "Que
doutrina é a de teu Cristo? Respondeu Jorge: "Conhecendo o Senhor,
a diligência que vós outros haveis de ter em perseguir os Santos, não
temais aqueles que matam o corpo, nem façais caso das coisas transitórias;
sabeis de certo que um cabelo de vossa cabeça não perecerá; e ainda
que bebas veneno não vos fará mal." Finalmente prometeu-nos
dizendo: "Aquele que crer em mim fará as obras que eu faço".
"Que obras são essas? "Dar vistas aos cegos, curar leprosos
fazer andar os mancos, abrir ouvidos aos surdos, expelir os demônios
dos corpos, ressuscitar os mortos e outras coisas semelhantes a
estas".
Virou-se então o imperador para Athanazio,
o mágico e lhe disse: "Que dizes tu a estas coisas?"
Respondeu Athanazio: "Admiro-me de ver como este jovem despeze a
vossa mansidão com suas mentiras; más já que ele diz, que os que
esperam no seu Deus farão as obras que ele faz, ali naquele sepulcro
que está diante de nós, está um defunto, que eu conheci, e pouco
tempo há que ali o sepultaram; se Jorge o ressuscitar, sem nenhuma dúvida
adoremos o seu Deus". Então o imperador fez sinal a Jorge que o
experimentasse.
Pediu então Magnêncio
ao imperador que mandasse soltar a Jorge, e depois de solto lhe disse:
"Agora, Jorge mostra-nos as maravilhas do teu Deus; e se o fizeres,
todos creremos nele. Respondeu Jorge: "Nobre Cônsul, Deus que
todas as coisas criou do nada, poderoso é para, por mim, ressuscitar
este defunto; mas como vossas almas estão cegas, não podereis entender
a verdade; porém, por amor do povo presente, isto que pedis
tentando-me, Deus o obrará por mim, para que o não atribuas a arte mágica.
Pois este mágico que aqui o trouxeste, confessa que nem por encanto,
nem pelo poder dos vossos deuses, pode um morto ser ressuscitado, em
diante de todos vós chamo a meu Deus"; e dizendo isto, pôs os
joelhos em terra, e quase chorando orava a Deus, e levantando-se disse
em alta voz: "Oh! eterno Deus de misericórdia, Deus de todas as
virtudes, e que todas as coisas pode, que não frustreis a esperança
dos que em vós confiam. Senhor Jesus Cristo, ouvi este mísero servo
vosso, nesta hora, assim, como ouvistes, Santos Apóstolos em todo o
lugar, dando-lhes poder para fazeres milagres e sinais. Dai, Senhor, a
esta geração má o sinal que pode, e ressuscitai este morto para glória
vossa, e do Padre e do Espírito Santo. Rogo-vos, Senhor, que mostreis a
estes circunstantes serdes só vós, Deus Altíssimo sobre toda a terra
e que eles conheçam serdes vós Senhor poderoso, a cuja vontade todas
as coisas estão sujeitas e que vossa será a glória para todo sempre.
Amém". Dizendo Amém, se ouviu um grande som, de maneira que
tremeram todos.
Logo se levantou grande alvoroço e tumulto
no povo e muitos deles louvaram a Cristo, dizendo que era o verdadeiro
Deus.
O imperador e os seus familiares,
espantados e cheios de incredulidade, diziam que Jorge era um grande mágico,
e que metera algum espírito naquele corpo para enganar os
circunstantes; mas depois que verdadeiramente viram e conheceram ser
homem o que ressurgira, e que chamava a Jesus Cristo, indo correndo para
Jorge, não sabiam mais o que dizer. Athanazio, encantado, vendo esta
maravilha, lançou-se aos pés de Jorge, dizendo em alta voz que Cristo
era Deus todo poderoso, e rogava ao Santo, que lhe alcançasse o perdão
de seus pecados.
Daí a pouco fez o imperador calar o povo,
e disse-lhe: "Veremos o engano e malícia destes feiticeiros? Este
Athanazio, semelhante a Jorge, ambos de uma mesma arte, favorecem um ao
antro; e as bebidas venenosas, não lhà deu, mas deu-lhe outra cheia de
encantamento para nos enganar". Acabando de dizer isto, mandou logo
degolar Athanazio com o que fora ressuscitada, dizendo o pregão que era
por confessarem a Cristo por Deus, e a Jorge mandou meter no cárcere,
onde o Santo dava graças a Nosso Senhor pelas grandes maravilhas que
por ele fazia.
E estando ali no cárcere, vinham a ele
muitos dos que tinham recebido a fé pelas maravilhas que foram feitas.
e desrespeitando os guardas, se lançavam aos pés dele, entre os quais
alguns enfermos que, em virtude do sinal e do nome do Cristo, foram por
ele curados. Andando um pobre homem lavrando a sua terra, um dos bois
com que lavrava caiu em terra e morreu; e ouvindo a fama de Jorge foi
correndo ao cárcere, chorando a perda do boi. Disse-lhe Jorge:
"Vai alegre, porque Cristo, meu Senhor, tornou teu boi à
vida". Crendo ele em suas palavras, foi correndo e achou o boi vivo
como Jorge dissera, e logo sem mais se deter, tornou este homem, chamado
Glycero, a Jorge, o ia pela cidade dizendo em vozes: "Muito grande
é o Deus dos Cristãos". Uns cavalheiros o prenderam e mandaram
dizer ao imperador o que se passara; o tirano cheio de ira o mandou
degolar fora da cidade.
E Glycero, muito alegre, como se fosse a
algum convite, ia correndo diante dos soldados que o levaram ao martírio,
e com alta voz chamava ao Senhor, pedindo- lhe que recebesse o seu martírio.
E desta maneira acabou a vida. Neste tempo, alguns dos senadores foram
acusar Jorge ao imperador, dizendo que estando no cárcere abalava o
povo e fazia a muitos receber a fé de Cristo.
Ouvindo isto, o imperador tomou conselho
com Magnêncio, e no dia seguinte mandou aparelhar sua cadeia junto ao
templo de Apolo, para que ali publicamente, fosse Jorge, perguntado.
Naquela noite, orando Jorge no cárcere e adormecendo, viu em sonho o
Senhor que por sua mão o levantava e abraçava, e lhe punha uma coroa
na cabeça, e dizia: "Não temas, mas tem forte o coração, pois já
és digno e mereces reinar comigo, não tardes em vir gozar dos bens
eternos, que te estão preparados". Acordando e dando graças a
Deus com muita alegria, chamou o carcereiro e disse-lhe: "Rogo-vos
irmão, que deixeis entrar neste cárcere meu empregado, porque me
importa falar com ele". Concedendo o carcereiro o seu pedido,
entrou o moço que estava muito triste pelos tormentos que passava o seu
senhor. Levantou-o da terra onde se lançara, chorando, consolou-o,
esforçou-o e disse-lhe: "Filho, muito cedo me chamara meu Senhor
para si, mas depois que passar desta vida, tomarás este mísero corpo e
leva-lo-ás a Palestina, à casa onde morávamos, e Deus será guia de
teu caminho, e não apartes nunca da fé de Cristo". E
prometendo-lhe o criado com muitas lágrimas, que assim o faria, abraçou-o
o Santo, a mandou-lhe que fosse dali em paz.
No dia seguinte, assentado Diocleciano em
sua cadeira imperial, mandou vir Jorge perante si, e começou com muita
mansidão e falar-lhe desta maneira: "Dize-me, Jorge, não te
parece que sou muito humano e benigno para ti? Testemunhas me sejam
todos os deuses como me pesa em extremo de tua mocidade, assim em flor,
da tua gentileza e formosura, como também pelo assento de tua descrição
e constância de ânimo. E desejo muito, se te apartares da fé cristã,
que mores juntamente comigo, e seja a segunda pessoa do meu império.
Agora me responde o que te parece."
Respondeu Jorge: "Razão era,
imperador, se tamanho amor e afeição me tinhas que me não
perseguisse, como o inimigo principal, e não executarás em mim tantos
tormentos por satisfazer com tua ira".
Ouviu o imperador isto com bom gosto e
disse a Jorge: "Se me quiseres obedecer como pai, eu te compensarei
os tormentos que te fiz dar, com muitas grandes honras que te
farei".
Disse então Jorge: "Se queres,
imperador, vamos ao templo a ver esses deuses que vós outros
honrais". Levantou-se logo o imperador com grande alegria, e mandou
declarar público que o Senado e todo o povo viesse ao templo. Indo o
povo para o templo, louvava ao imperador pela vitória que, cuidavam,
alcançara Jorge. Entrados todos no templo, e aparelhado o sacrifício,
tinham todos postos os ollios no mártir esperando que sem nenhuma dúvida
havia de sacrificar.
Jorge chegou à estátua de Apolo, e
estendendo a mão, disse: "Por que coisa quereis tu que te ofereça
sacrifícios como a Deus?"
E logo faz o sinal da cruz. O demônio, que
dentro do ídolo estava, bradava dizendo: "Não sou Deus, nem algum
semelhante a mim é o Deus a quem pregas. Nós, de Anjos fomos feitos
diabos, e enganamos os homens pela inveja que lhes temos. Perguntou-lhe
então Jorge: "Pois como ousais vós outros estar aqui neste lugar
estando eu presente, que adoro o verdadeiro Deus?" Dizendo isto se
sentiu um ruído, como choro que saía das estátuas, e caíram todos os
ídolos em terra e fizeram-se em pedaços.
Levantaram-se então alguns dos do povo
acesos em ira e fúria, instigando os sacerdotes, tomarem Jorge, e açoitando-o,
bradavam dizendo. "Mate este feiticeiro, oh! Imperador, mate este mágico".
E correndo estas novas, logo pela cidade, a imperatriz Alexandra, não
podendo mais encobrir a fé de Cristo que tinha, veio com grande pressa,
e vendo o alvoroço do povo e Jorge preso, e longe dela, e que pela
muita gente não podia chegar a ele, bradou em alta voz e dizia:
"Deus de Jorge, ajudai-me". Pacificando o alvoroço do povo
mandou Diocleciano trazer diante de si Jorge, e com grande ira lhe
disse: "Mau homem, desta maneira agradeces a bondade com que te
trato? "Deste modo costuma sacrificar aos deuses? "Respondeu
Jorge: "Sem dúvida, imperador, que deste modo, aprendi eu a
sacrificar aos teus deuses: daqui em diante tem vergonha de atribuir a
saúde que tens a tais deuses, os quais não podem sofrer a presença
dos servos de Cristo".
Dizendo estas palavras o Santo, chegou a
imperatriz e disse ao imperador o que tinha dito d'antes, e lançou-se
aos pés de Jorge. Vendo
isto o imperador, disse: "Que novidade é esta, Alexandra, que te
afeiçoou a este mágico encantador? A bem-aventurada imperatriz não
lhe quis responder, tendo-o por indigno de sua resposta. O cruel
imperador, cheio de ira e furor pela mudança da imperatriz, deu contra
Jorge e contra ela a sentença seguinte: Mando degolar a esse péssimo
Jorge, o qual , assim aos deuses como a mim injuriou gravemente; e o
mesmo fez Alexandra, imperatriz, enganada com seus feitiços.
Tomaram logo os soldados Jorge e o levaram
preso fora da cidade, juntamente com a nobilíssima imperatriz, que
orando a Deus como alegre ânimo, caminhava para o lugar do martírio; e
indo assim, chegando a um certo lugar, pediu que a deixassem assentar um
pouco, e assentando sobre o seu vestido, inclinou a cabeça sobre os
joelhos e assim deu o espírito a Deus.
Por essa razão a bem-aventurado mártir,
Jorge louvando e dando graças a Deus caminhava com grande alegria.
Chegando ao lugar determinado fez oração ao SENHOR, dizendo:
"Bendito sois, Senhor Deus meu, porque
não permitistes que eu fosse despedaçado pelos dentes daqueles que me
queriam e buscavam, nem consentiste que meus inimigos ficassem alegres
com a vitória: porque livraste a minha alma, como pássaro do laço dos
caçadores. Pois agora, Senhor, também me ouvi, sede comigo nesta última
hora, e livrai a minha alma da maldade dos malignos espíritos; e todos
os males que por ignorância em mim executam, lhes perdoai. Recebei,
Senhor, a minha alma com aqueles que desde o princípio do mundo vos
serviram, e esquecei-vos de todos os meus pecados, que eu
voluntariamente, ou por ignorância cometi".
"Lembrai-vos, Senhor, dos que recorrem
ao vosso Santo nome, porque vós sois "Santo", bendito e
glorioso para sempre, Amém".
Acabando de dizer isto, estendeu o pescoço
com alegria e foi degolado, e entregou sua alma nas mãos dos anjos a 23
de Abril, fazendo excelente confissão de fé pura e sã pelo ano 303.
Os restos mortais de São Jorge foram
transportados para Lidia (Antiga Dióspolis), onde o Santo foi
sepultado, e onde o imperador Cristão Constantino, mandou erguer
suntuoso oratório aberto aos fiéis para que o Culto ao Santo fosse
espalhado. Seu culto espalhou-se imediatamente por todo o Oriente. Pelo
século V, já haviam cinco igrejas em Constantinopla dedicadas a São
Jorge. Só no Egito, nos primeiros séculos após sua morte, construíram-se
quatro igrejas e quarenta conventos dedicados ao mártir. Na Armênia,
em Bizôncio, no Estreito de Bósforo na Grécia, São Jorge era
inscrito entre os maiores Santos da Igreja Católica. No Ocidente, na
Idade Média, as Cruzadas colocaram São Jorge à frente de suas milícias,
como Patrono da Cavalaria. Na Itália era padroeiro de Gênova. Na
Alemanha, Frederico III criou uma ordem Militar. Na França, São Gregório
de Tours era conhecido pela devoção a São Jorge. Nas Gálias, o rei
Clóvis dedicou-lhe um mosteiro, e sua esposa, Santa Clotide, erigiu várias
igrejas e conventos em sua honra. A Inglaterra foi o país Ocidental
onde a devoção ao Santo teve papel mais saliente. O monarca Eduardo
III colocou a proteção de São Jorge a Ordem da Cavalaria da
jarrateira, fundada por ele em 1330.
Os Ingleses escolheram São Jorge como
padroeiro do país, imitando os gregos que, também, trazem a cruz de São
Jorge na sua bandeira.
E ainda durante a Grande Guerra (1914-1918
muitas das medalhas foram cunhadas e oferecidas aos enfermeiros
militares e as irmães de caridade que se sacrificaram ao tomar conta
dos feridos da guerra.
As artes, também, divulgaram amplamente a
imagem do santo. Em Paris, no Museu do Louvre, há um quadro famoso de
Rafael (1483-1520), intitulado "São Jorge vencedor do Dragão".
Na Itália, existem diversos quadros célebres; um deles está em
Veneza, de autoria do pintor Carpaccio (1450-1525) e outro, não menos
notável, pintado por Donatello (1386-1466).
E hoje, no mundo inteiro, invocam o Santo,
pedem sua intercessão e elogiam os admiráveis rasgos de sua poderosa
proteção.
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